Antes de ser sujeito de desejo, a criança se vê transformada em imagem. Em tempos de hiperconexão, psicanalista alerta para os efeitos da exposição precoce nas redes sociais e os riscos de uma infância sem privacidade.

Antes de aprender a escrever seu nome, muitas crianças já têm dezenas — às vezes centenas — de imagens públicas na internet. Algumas ainda nem nasceram e já foram exibidas em ultrassons com molduras digitais. O gesto que parece simples, amoroso e cotidiano virou parte do nosso tempo: transformar a infância em conteúdo. Mas o que isso significa para a constituição psíquica de quem ainda está em formação?

Para a psicanalista Camila Camaratta, essa exposição não fere apenas o direito à privacidade: ela interfere diretamente no desenvolvimento emocional da criança, principalmente quando acontece sem consciência dos impactos. “A criança ainda está formando seus contornos psíquicos. Quando sua imagem é compartilhada sem mediação, ela passa a ser vista por um público externo antes mesmo de saber quem é. O olhar do outro antecede o olhar sobre si mesma. Isso pode confundir esse processo e afetar a construção da autoestima e do senso de identidade.”

O fenômeno tem nome: sharenting. Trata-se do hábito de pais e mães compartilharem constantemente a rotina dos filhos nas redes sociais — muitas vezes como expressão de afeto, mas também como uma forma de buscar validação externa. Para Camila, o risco está em transformar a criança em espelho do ideal adulto: “Ela deixa de ser sujeito e passa a ocupar o lugar de objeto do desejo do outro. Uma vitrine. Uma narrativa. Uma performance.”

E essa vitrine é mais exposta do que se imagina. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, realizada pelo Cetic.br em parceria com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 83% das crianças e adolescentes brasileiros entre 9 e 17 anos possuem perfil em redes sociais, e 70% acessam essas plataformas diariamente. Entre os mais velhos, o uso é ainda mais intenso: 91% dos jovens de 15 a 17 anos utilizam o WhatsApp todos os dias ou quase todos os dias, enquanto cerca de 80% dos adolescentes de 13 a 17 anos acessam o Instagram com a mesma frequência. O tempo de tela não é apenas passatempo: é território psíquico em disputa.

Do ponto de vista da psicanálise, especialmente a partir das contribuições de Donald Winnicott, o sujeito em desenvolvimento precisa de um ambiente suficientemente bom para amadurecer emocionalmente. Isso inclui proteção, escuta e um espaço continente, onde ele possa ser, imaginar, brincar e errar — sem se tornar imagem para o mundo. Quando esse espaço é invadido por curtidas, comentários e postagens sem filtro, algo se rompe.

A exposição excessiva também pode ter consequências práticas. De acordo com a pesquisa PeNSE, 13,2% dos adolescentes brasileiros relataram ter sofrido cyberbullying — sendo que esse índice é ainda maior entre meninas (16,2%) e jovens sem supervisão digital. Outras estatísticas mostram que 42% dos jovens são alvos de bullying no Instagram, e 64% dos usuários do TikTok já enfrentaram alguma forma de abuso. O que era para ser uma brincadeira vira um palco de humilhação pública, que interfere diretamente na autoestima, no sono, no desempenho escolar, na vida social e, consequentemente, na saúde mental.

Mas o problema não está apenas naquilo que postamos das crianças — e sim naquilo que elas mesmas consomem. Um estudo recente mostrou que contas infantis no YouTube são expostas a conteúdos inapropriados em poucos minutos, e que 11% dos comentários em vídeos infantis são agressivos ou inadequados. “Os adultos precisam estar atentos não só ao que expõem, mas ao que deixam entrar. Vídeos, comentários, desafios… tudo isso atravessa e forma a criança em silêncio, todos os dias”, alerta Camila. Nesse contexto, surge o que muitos jovens já nomeiam como brainrot — uma espécie de esgotamento mental causado pela exposição contínua e desordenada a conteúdos digitais. O que parece inofensivo vira ruído permanente, dificultando a construção de um espaço interno de elaboração e simbolização.

Esse cenário exige uma escuta ética sobre o que Camila chama de “direito à vulnerabilidade” — a possibilidade de viver a infância com imperfeição, insegurança e privacidade, sem a pressão de performar ou corresponder a expectativas externas. Reconhecer essa vulnerabilidade não é fragilizá-la, mas protegê-la.

As consequências dessa exposição muitas vezes não aparecem na infância, mas explodem na adolescência. Quando os pais deixam de postar, os filhos já internalizaram o hábito de se verem expostos com frequência exacerbada. Sem distinguir bem os limites entre público e privado, passam a compartilhar intimidades — às vezes de forma arriscada e impulsiva. É nesse contexto que surgem casos, como por exemplo, de nudes enviados em confiança e depois viralizados, que, além de afetar profundamente o jovem, envolvem também os pais em consequências legais e emocionais. “O que foi naturalizado por tanto tempo pode se tornar o ponto de maior descontrole”, explica Camila.

Na fase da pré-adolescência e adolescência, a mente dos jovens já está bastante ocupada com questões que naturalmente geram ansiedade, como a busca mais ativa da própria identidade, necessidade de aceitação, fazer parte de grupos, preocupações corporais e distanciamento das figuras parentais — o que os deixa ainda mais vulneráveis à inclemência das redes sociais.

Além de Winnicott, a psicanalista também se apoia nas ideias de Françoise Dolto, que defendia a importância de reconhecer a criança como um sujeito de desejo — capaz de sentir, reagir, interpretar, mesmo que não fale como um adulto. Para ela, escutar a criança é mais urgente do que mostrar a criança: “Perguntar se ela quer ser fotografada, se gostou do que postaram, se quer ver o que falam sobre ela… tudo isso é simbólico. É dar voz, não exposição.”

A chave, segundo Camila, está em inverter a lógica. Em vez de perguntar “Posso postar?”, o adulto pode se perguntar: “Por que preciso postar isso agora?”. Será que a criança está pronta para lidar com os efeitos desse conteúdo agora e no futuro? Isso a ajuda a se constituir ou só satisfaz uma necessidade externa?

Proteger a infância nas redes sociais não é impedir que ela exista no mundo digital — mas, sim, garantir que a criança exista, primeiro, como sujeito, e não como imagem. Que possa errar sem ser julgada, brincar sem ser filmada, chorar sem virar conteúdo. Que tenha direito ao silêncio, à invisibilidade, ao anonimato — como parte fundamental do seu amadurecimento emocional.

A infância precisa de tempo. De escuta. De espaço lúdico para que a criança possa construir uma capacidade simbólica própria. E, sobretudo, de adultos capazes de sustentar esse tempo — não como curadores de conteúdo, mas como guardiões do invisível, do que ainda está por vir, e do que precisa ser protegido para florescer.

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